Madrugadas

Numa noite qualquer, de um dia absolutamente normal, entre cigarros mal fumados e copos de vinho bem bebidos, eles falam, escutam-se, olham-se, estudam-se, aprendem…

Já reparaste como há pessoas que passam na nossa vida, que de tão especiais e importantes, não fazem parte…chegam e ficam para sempre…como parte integrante de nós, como uma componente indivisível da qual não nos separamos nunca?
Como assim?
Há pessoas que nos descobrem, ou que são descobertas por nós, obra do acaso ou circunstância, por pele, cheiro ou admiração instantânea, que nos fazem queres ser, querer estar, querer crescer, e que por isso tudo, e as vezes um pouco mais, passam a ser parte integrante de nós.
São uma espécie de um coach? Que te apoia e incentiva na mudança? Ou quiçá um frúnculo?
Não, que disparate, nada disso.
Da minha vivencia, são pessoas que nem tem total consciência da sua importância, do alcance, da sua posição, da relevância da sua opinião e presença. São pessoas que acima de tudo tem um livre transito, que lhes dá acesso ilimitado a todas as áreas e recantos da tua pessoa, da tua essência, do teu ser, mas que fundamentalmente são parte.
Deixa ver se percebo! Portanto é a pessoa que melhor te conhece?
Não necessariamente.
Mas certamente será aquela que melhor queria que conhecesse e é garantidamente aquela a quem permito o maior grau de transparência, do meu ser, do meu estar, das minhas aflições, dos meus medos e das minhas conquistas, até porque é daquelas, muitos poucas, quase nenhumas, a quem desejo mais do que a mim.
Hummmm, isso é amor.
Deixa-me continuar a explicar, já vais perceber.
É tudo uma questão de confiança. E a confiança é para mim, o sentimento que anda sempre de mãos dadas com o amor, mas que é ainda mais frágil do que este, em especial para pessoas como nós, com vidas já bem vividas e com marcas que o provam.
Espera um pouco, suponho que confias em quem trabalhas, certo? Mas não vais dizer que os amas!
Confio, obviamente, mas claro que não amo. Esse é um outro nível de confiança, relacionado com as capacidades profissionais, intelectuais e organizativas, esta conversa é sobre intimidade, ok? Estás um bocado literal ou a desconversar?
Não, desculpa, mas esse nível de confiança, a que pareces referir-te, tu que és normalmente tão dura e com tantas barreiras, é demasiado íntimo, quase ao nível celular, ou estou a perceber mal as tuas palavras?
Não estás, é mesmo isso. Repara que eu disse que era como uma parte indivisível, logo, celular se quiseres ir por aí na analogia. É aquela pessoa a quem tu dizes tudo o que te vai lá dentro, e te disponibilizas a ouvir tudo o que vem do outro lado. Assim, sem merdas, duro, cru e transparente…nu.
Percebo, mas parece-me, que assim de repente ficas demasiado fragilizada perante essa, ou essas, pessoa ou pessoas. Quem tem acesso a tudo em ti, dentro de ti, pode muito bem fazer-te mal!
Essa última frase, é de um post do Instagram?
Eu não vejo as coisas assim. Mas sim, tens uma certa razão, se deixas a pessoa entrar para a zona do teu ser que é mais restrita, onde normalmente só estás lá tu, depositas como é obvio a tua essência nas mãos de outrem. Mas eu disse que era uma questão de confiança do meu lado, mas convenhamos que também será eventualmente de responsabilidade do outro.
Como assim eventualmente?
Claro que é eventualmente, tudo isto não deixa de ser uma questão de fé. Tu confias em alguém com a tua vida, não quer dizer que a pessoa esteja lá para ti, tu é que acreditas nisso, logo é uma questão de fé.
Mas essa confiança, vem de onde, logo tu que és tão híper protetora do que pensas e mais ainda do que sentes. Como é que alguém chega aí? Como é que dás esses passes de acesso ilimitado a alguém?
Sinceramente também não sei bem, mas acho que não dás arbitrariamente ou com critério, a pessoa é que os conquista, pela sua forma de estar, pela postura, pela personalidade, pela vivencia, pelo envolvimento, e quando conquista, vem cá buscar, tu só deixas que o leve.
Mas a vida nem sempre é linear, quase nunca é fácil, andamos sempre a correr de um lado para o outro e a defraudar expectativas, não corres o risco de te magoares, de uma forma mais violenta?
Sim corro, e sim magoo-me.
E o que acontece à confiança quando te magoas? Não baixa?
Não. Esta confiança para mim, a este nível, só tem um modo de existir, ou tens, ou não tens. Até porque é demasiado íntimo é demasiado invasor, com demasiada exposição, por isso meias tintas não funcionam.
Continuo a achar que isso é amor.
Como te digo, para mim é confiança…o amor vai lá dentro.

Estavas a falar de mim não estavas?
Estava.

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